O Fonlad não é um festival comum. A sua origem enquanto festival online — numa altura em que o mundo artístico ainda hesitava diante do virtual — constitui um gesto inaugural de ousadia. Quando quase ninguém acreditava nas potencialidades curatoriais da internet, o Fonlad construiu uma plataforma de acolhimento para práticas artísticas digitais, num gesto de descentralização da arte, propondo-se como ponto de encontro de comunidades dispersas e linguagens em trânsito. Se hoje muitos festivais reivindicam o digital como território fértil, o Fonlad fê-lo há duas décadas, com uma lucidez visionária que importa reconhecer.
Porém, o seu crescimento não seguiu a lógica da expansão territorial nem da espetacularização. O Fonlad preferiu crescer em profundidade: aprofundando relações com artistas, consolidando parcerias com festivais irmãos (como Magmart em Itália, Miden na Grécia, Proyector em Espanha, Cologne OFF na Alemanha, ou Strangloscope no Brasil) e ampliando os horizontes do que se entende por vídeo arte, performance digital ou instalação multimédia. Ao invés de colecionar nomes sonantes, o festival concentrou-se em promover zonas de fricção criativa — onde a arte experimental pudesse respirar, livre das pressões do mercado e dos cânones museológicos.
A ligação ao território é também parte fundamental da sua identidade. Com sede em Coimbra, uma cidade marcada por uma herança universitária que oscila entre o conservadorismo e a experimentação, o Fonlad estabeleceu um diálogo ativo com diversos espaços culturais da cidade: a Casa da Esquina, o Centro Cultural Penedo da Saudade, o Museu da Água, o Convento de S. Francisco, a Oficina Municipal do Teatro, entre outros. Esses locais tornaram-se palcos de encontros transdisciplinares onde a vídeo arte convive com a performance, a literatura com a instalação, a dança com o som. Em alguns casos, o espaço expositivo transforma-se num corpo ativo: um organismo vivo que absorve as ações dos artistas e se deixa contaminar pelos seus gestos.
Importa sublinhar que o festival nunca se isolou numa lógica de nicho. Através de oficinas, sessões escolares, residências artísticas e colaborações intergeracionais, o Fonlad foi também um dispositivo pedagógico, promovendo um acesso crítico e sensível à arte contemporânea. A criação do iFIVE – Festival Internacional de Vídeo Escolar, em parceria com várias escolas de Coimbra, exemplifica essa vontade de cultivar novos olhares desde cedo, inserindo a prática da vídeo arte no quotidiano escolar, não como mera extensão curricular, mas como gesto criador autónomo.
A curadoria, frequentemente assumida por José Vieira e Sérgio Gomes — duas figuras indissociáveis da génese e crescimento do projeto — nunca se rendeu ao óbvio. A sua escolha de artistas e obras revela um cuidado meticuloso na construção de narrativas visuais e conceptuais. O festival tanto acolhe artistas emergentes como nomes reconhecidos no circuito internacional, mas fá-lo sempre a partir de um critério de pertinência estética e ética. A atenção ao detalhe, à experimentação formal, à ousadia do gesto, são marcas constantes das seleções anuais.
Ao longo dos anos, o Fonlad acolheu centenas de artistas oriundos de todos os continentes. Em edições anteriores, podemos encontrar obras de autores como Francesca Fini, Francesca Leoni, David Burns, Carla Forte, Angella Conte, Márcia Beatriz Granero, Vijay Araghavan, Mario Gutiérrez Cru, entre muitos outros. Os temas abordados cruzam questões de identidade, território, memória, género, política, corpo e virtualidade — mas mais do que representar o mundo, os trabalhos apresentados tendem a desestabilizá-lo, a interrogá-lo, a refazer os seus contornos simbólicos.
Um exemplo eloquente da força poética e política do festival foi a performance “Faixa de Gaze” (2023), concebida a partir do conto “A Flor”, de António Amaral Tavares. Aqui, a fragilidade do habitar foi traduzida visual e materialmente através da gaze — tecido efémero e simbólico — em clara alusão à Faixa de Gaza, território marcado por uma existência constantemente ameaçada. O gesto artístico, neste caso, torna-se simultaneamente denúncia e cuidado, memória e ação. É esse tipo de densidade simbólica que distingue o Fonlad de outros festivais que muitas vezes se limitam à exibição de obras sem contexto ou sem pensamento crítico.
Outro aspeto distintivo do Fonlad é a sua constante reinvenção formal. Em vez de se cristalizar num modelo expositivo estático, o festival explora continuamente novas possibilidades de apresentação: projeções ao ar livre, instalações site-specific, eventos híbridos, mostras online, intervenções performativas. Essa plasticidade formal reflete a própria natureza do vídeo enquanto meio artístico em mutação permanente — ora imagem em movimento, ora corpo expandido, ora som visual.
Com o tempo, o Fonlad tornou-se um espaço de convergência internacional, com artistas de países tão distintos como Japão, Canadá, Israel, Argentina, Finlândia, Brasil ou Austrália. Esta dimensão global, no entanto, não desvirtua a sua identidade local. Pelo contrário: é precisamente pela sua inserção num território específico, com as suas idiossincrasias e tensões, que o festival pode dialogar de forma relevante com o mundo. A internacionalização do Fonlad não resulta de uma ambição cosmopolita abstrata, mas da coerência de um percurso artístico profundamente enraizado no presente.
A ligação ao corpo — e à sua representação, transformação e ficcionalização — é outra linha contínua na história do festival. Projetos como “Lilith Vai Para Todo o Lado” ou “Momentum” (em parceria com o Convento São Francisco) demonstram a centralidade da performance como linguagem de fronteira, onde o vídeo deixa de ser apenas registo e se torna extensão do gesto, pele translúcida da ação. Essa relação com o corpo é, ao mesmo tempo, uma exploração da presença e da ausência — temas que ganham especial relevo em tempos de hiperconectividade e isolamento digital.
Ao integrar o Fonlad na programação da Associação Videolab, reconhece-se o seu papel enquanto vértice de um projeto cultural mais amplo, que ao longo dos anos se desdobrou em exposições, residências, formações, publicações e ações comunitárias. A Videolab não é apenas uma entidade organizadora, mas um verdadeiro laboratório de criação e reflexão sobre a imagem, o som e o corpo. O Fonlad, nesse contexto, funciona como espelho e motor — revelando o que de mais inquietante e vibrante se faz na arte digital contemporânea.
Hoje, ao olhar para trás, não se pode deixar de reconhecer o contributo do Fonlad para a legitimação e difusão da vídeo arte em Portugal. Num país onde o experimentalismo audiovisual permanece frequentemente à margem dos grandes circuitos institucionais, o festival abriu espaço para artistas, obras e públicos que de outro modo teriam permanecido invisíveis. Mas mais do que isso: criou uma comunidade. Uma comunidade de criadores, espectadores, cúmplices, onde a arte não é apenas exibida, mas discutida, tocada, vivida.
O Fonlad é, em última análise, um espaço de resistência. Não uma resistência passiva ou nostálgica, mas uma forma ativa de ocupar o tempo e o espaço com gestos criativos que desorganizam o mundo para o reconfigurar. Numa época em que o algoritmo dita o gosto e a atenção é mercadoria, o festival insiste no olhar lento, na escuta atenta, na experiência partilhada. E talvez seja essa a sua maior conquista: provar que ainda é possível fazer arte fora dos centros, à margem dos modelos dominantes, e ainda assim (ou precisamente por isso) tocar o essencial.
PROGRAMA
1
- 5 JUNHO,
15h00 – 18h00
Curso de Formação em Video Arte e Performance
Com José Vieira e Sérgio Gomes
Centro Cultural Penedo da Saudade
1
- 31 JULHO,
14h00 – 18h00, de terça a domingo
Mostra de Vídeo Arte Internacional:
Festivais InShadow (Pt), Fonlad (Pt), Miden
(Gr), Magmart (It) e Proyector (Es)
Centro Cultural Penedo da Saudade
3 - 8 JULHO, 15h00 – 18h00
Residências artísticas de:
Mario Gutiérrez Cru & LARQuicios (Es),
Pedro Sena Nunes (Pt), Coletivo Videolab (Pt)
Centro Cultural Penedo da Saudade
4 JULHO, 18h00
Concerto c/ LARQuicios (Es)
Audiovisuais de Mario Gutiérrez Cru (Es)
Centro Cultural Penedo da Saudade
8 - 31 JULHO, 14h00 – 18h00, de terça a domingo
Mostra dos projetos de residência
Mario Gutiérrez Cru & LARQuicios (Es),
Pedro Sena Nunes (Pt), Coletivo Videolab (Pt)
Centro Cultural Penedo da Saudade
11 JULHO, 18h00
Concerto c/ Pespakova
Centro Cultural Penedo da Saudade
18 JULHO, 18h00
“Os iniciados”, conversa / performance com José
Vieira
Centro Cultural Penedo da Saudade
25 JULHO, 18h00
“Poetri in the Bothle”, performance pelo grupo Criolagens
Estéticas
Apresentação de Livro LUA
Centro Cultural Penedo da Saudade
31 JULHO, 18h00
“The Last Dance”, dança por Maria do Mar
Apresentação de Livro FONLAD 20 Anos
Centro Cultural Penedo da Saudade
Direção artística: Sérgio Gomes, José Vieira
Artistas convidados:
Mario Gutiérrez Cru & L.A.R.Quicios (Es), Pedro Sena Nunes (Pt),
Comissários convidados: Enrico Tomaselli (It),
Gioula Papadopoulou (Gr), Mario Gutiérrez Cru (Es), Pedro Sena Nunes (Pt)
Festivais parceiros:
InShadow (Pt), Magmart (It), Miden (Gr), Proyector (Es)
Parceria: Centro Cultural Penedo da Saudade
Apoio: Câmara Municipal de Coimbra